Qual o papel da mulher na nossa sociedade? Esta visão choca muita gente
Mas já faz um tempo que parei de panfletar e passei a olhar mais pra mim mesma. Nossas ações sociais são muito valiosas, para mim é um fato que a sociedade só evoluiu graças a gente corajosa, capaz de lutar por minorias. As mudanças não acontecem sozinhas, todas as conquistas nasceram de muito sangue, suor e lágrimas.
Sou totalmente a favor das lutas sociais.
Mas eu precisava olhar pra mim mesma... talvez faça parte de quem quer seguir um caminho espiritual, a gente chega numa fase em que a única forma de lidar com nossos traumas, demônios e feridas é abrir mão de todas as distrações, por mais nobres que elas sejam. E focar em si mesma.
Nas redes sociais há vários textos meus sobre o feminismo. Defendendo o direito das mulheres não serem estupradas e assassinadas porque falaram "não quero mais ser sua mulher", porque não gostaram de um cara, porque traíram, porque sorriram. O direito das mulheres transarem com quem elas quiserem -- inclusive com homens que não seus companheiros, e que a consequência disso seja a separação, e não tortura e assassinato. Falo sobre minha promiscuidade, o meu direito a ter sexo com quem eu quiser, de ser mulher livre, independente.
Acredito em tudo isso e muito mais. E ao mesmo tempo, este pequeno vídeo de 5 minutos, homenagem do O Corpo Explica ao 8 de Março, para mim está pleno de verdade:
https://www.instagram.com/tv/CMPl-BDlYbN/?utm_source=ig_web_copy_link
Chorei muito vendo esse vídeo, e acho que por um bom tempo, serei capaz de chorar só de lembrar da imagem. A mensagem é de que em uma sociedade saudável, é imprescindível que nas famílias o homem assuma seu yang, o papel de quem banca a família e cuida de tudo, que seria capaz de roubar e matar para garantir a segurança da sua família. O homem tem que assumir essa força, para que no momento de ter filhos nada interfira na capacidade da mulher ser yin, aquela que é receptiva e recebe, que oferece carinho infinito, capaz de nutrir emocionalmente a criança, dar colo, fazer a criança se sentir amada e protegida. -- Não são essas as palavras do vídeo, essa é minha leitura, eles nunca falam em termo místicos, e essa é uma das forças deles. É visualmente muito impactante, assista.
Eu acredito que muitas ou talvez todas as merdas que a gente vive na sociedade têm origem na corrupção de algo que devia ser sagrado:
Ser criança e ter todo o colo da sua mãe que você quiser.
Ser criança e se sentir totalmente segura, protegida, cuidada, amada.
Tenho falado que o amor-próprio é a solução para todos os nossos fucking problemas, mas adivinha por que a gente tem que lutar tanto para conquistar?
Não é que nossos pais não tenham nos amado, na maioria das famílias os pais amaram e amam muito seus filhos. Mas ser amado é diferente de se sentir amado, ainda mais porque amor é um conceito vastíssimo e, pior do que isso, infância SEMPRE será traumática.
A Clarissa Pinkola Estés, autora do famoso Mulheres que correm com os lobos, disse que todo mundo começa a vida da consciência de si, de sua individualidade, como uma pilha de ossos dispersos pelo deserto, em que vamos juntando peça por peça, até formar um esqueleto e poder fazer um ritual que dará vida àqueles ossos, que primeiro correrão como uma loba, e um dia se transformarão em uma mulher. Meu psicólogo me fala de teóricos que defendem que todas as pessoas passam por algum ou alguns eventos na infância em que vão se sentir abusadas. O processo civilizatório é uma tortura para todo mundo, não tem como ser diferente.
Mas o que imagino é que se você recebe muito colo quando era criança, se você se sentia seguro, protegido, acolhido, compreendido a maior parte do tempo, há menos escombros para tirar quando você começa o caminho de entender quem você é, é mais fácil e mais rápido juntar as peças do quebra-cabeças.
Meus pais me amaram e me amam muito, sacrificaram a vida, todos os sonhos, só para cuidar de quatro filhos. A partir dos 20 e poucos anos, abriram mão de qualquer individualidade e passaram a viver pelos filhos, trabalhar de forma extenuante só para que os filhos pudessem estudar sem precisar trabalhar, tudo que eles faziam era pela gente, inclusive finais de semana, atividades com a comunidade, só por acreditarem que era algo bom para nós.
Meu eu adulto sabe de tudo isso, é grato, honra e louva meus pais.
Mas meu eu criança, a minha criança, assiste a um vídeo desses e chora. E se eu estivesse sozinha, seria capaz de chorar o dia inteiro, ou talvez por dias.
Vivi minha vida toda sendo forte, mulher guerreira, tanque de guerra e, como sempre falo, há grandes vantagens em ser um tanque de guerra. Mas o problema é que um tanque de guerra não tem como ficar no colo de ninguém, são toneladas de armadura, metal frio.
O tanque de guerra, a mulher guerreira, vive sozinha, sem nunca ter um relacionamento realmente satisfatório porque é uma mulher que ao mesmo tempo também é um homem forte. Energeticamente um homem forte não conecta com uma mulher guerreira, porque o papel masculino já está ocupado. Mas uma mulher guerreira pode atrair homens banana, cafajestes, emocionalmente indisponíveis, porque eles não têm um masculino saudável, não há um homem inteiro lá.
Não somos azaradas, os homens não são todos horríveis e traíra.
A gente apenas tem machucados de que precisamos cuidar.
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Eu tenho muito amor-próprio. Mas ainda não sei viver sem a armadura, ainda vivo como tanque de guerra em muitos momentos.
- Ou a guerra acabou, e estou como aqueles veteranos vivendo o TEPT.
- Ou ainda tenho machucados para curar.
Provavelmente é uma mistura das duas coisas. Tenho muito amor-próprio, mas ter muito amor-próprio não é sinônimo de cura total.
No ritual em que senti que minha Chama está saindo do buraco, teve uma outra sensação. Na casa dos meus pais tem uma edícula com paredes descascadas, sem forro no teto, goteiras. Gosto muito daquele lugar. Há vigas de madeira de sustentação do teto, a madeira é nobre, antiga, cheia de marcas. Elas me lembram a fogueira.
Sei que já queimei na fogueira da Inquisição em mais de uma vida, que já fui morta apedrejada mais de uma vida. Estuprada por um ou vários homens e deixada pra morrer como um animal. Vidas em que me senti abandonada pela Grande Mãe.
Para quem é cético, pode interpretar como imagens simbólicas dos traumas de abuso sexual quando eu tinha entre 3 e 5 anos. Uma das minhas feridas, dos meus desafios é entender que eu sempre fui amada, e que tudo que eu vivi foram escolhas.
A cura acontece em espiral, rodadas, camada após camada. Teve um dos rituais que fiz, enquanto ainda morava em São Paulo, uma manhã silenciosa em que me senti inudada de gratidão, de um jeito que fazia as lágrimas escorrerem sem parar. Conversas com a Grande Mãe:
Você é amada, minha criança?
Sim, Mãe.
Você é amada?
Sim, Mãe.
Agora você consegue enxergar que você é amada, que nada do que acontece na sua vida muda isso, que todo sofrimento que você já viveu foram escolhas da sua alma, experiências que você queria viver? Mas que meu amor por você nunca se alterou?
Sim, Mãe.
E no ritual nesta semana, contemplando as marcas na madeira e pensando na fogueira, veio de novo essa sensação de compreensão que é como ser inundada por um oceano de veludo azul escuro ou preto, mas não tem nada de assustador ou sufocante, é aconchegante, morno, delicioso, silencioso, lindo.
Se tem um som,
acho que é do coração da minha mãe.
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Fonte da imagem: https://br.pinterest.com/pin/472103973444199188/