Ilusões sobre vida no mato e das tribos indígenas, e o peso da gravidez

Duas pessoas bem queridas me falaram com intervalo de poucos dias sobre viver em meio à natureza x o quanto a cidade é ruim, e uma delas me contou do desencanto com as sociedades indígenas, ao ler livros etnográficos e entender como são sociedades machistas e opressoras para as mulheres, sendo que antes essa pessoa tinha uma visão de que as tribos viviam de forma idílica, ideal.

Foi uma conversa interessante, eu nunca li com detalhes sobre as tribos, mas tinha uma boa noção de que a maioria das sociedades é assim, e a explicação que mais me fez sentido é a hipótese da influência da gravidez. Como vocês sabem, nenhuma outra criatura do planeta Terra tem um filhote que é tão frágil e dependente dos pais por tanto tempo. Esse luxo é um dos motivos de podermos ter cérebros tão grandes, complexos, fabulosos. O preço é só a dedicação total da mãe por vários anos.

O fato da mulher ser a parte que fica prenha tem todo um desdobramento nas estruturas sociais. Você podia ser a melhor guerreira da sua tribo: se você engravidou, isso acabou.

A gravidez interrompe qualquer trajetória da vida de uma mulher, de forma dramática. E sabem há quanto tempo isso mudou, e apenas para uma parcela das mulheres?

Só cinquenta anos.

A espécie humana tem cerca de 350 mil anos, dos quais, nos últimos 50, foi possível pra mulher começar a ter um pouco mais de poder sobre a própria vida. Por causa da pílula, que nem foi inventada com esse objetivo, e sim pela preocupação com a explosão populacional.

Poucas décadas atrás, as mulheres eram minoria nas faculdades. Porque era imprevisível o momento de ficar grávida, e quando ficava grávida ferrava tudo. Na verdade, até hoje: lembram do escândalo dos vestibulares no Japão, fraudados, para tirar mulheres e colocarem mais homens? E o argumento dos fraudadores era exatamente este: quando a mulher engravida ela abandona a faculdade, então é um desperdício de recursos. 

Quando você fica grávida sua vida vira de pernas pro ar. Você se torna dependente de outras pessoas pra sobreviver, pra se alimentar, pro seu filho ter o que comer. Essa dependência tornou a mulher a parte frágil economicamente, socialmente. 

Uma mulher que engravida e depois tem filhos é um funcionário muito menos competitivo do que um homem sem filhos ou, mesmo que tenha, em geral o homem não é o principal responsável.  

Uma mulher com filhos tem condições muito mais difíceis para se tornar uma cientista, uma artista, uma atleta, porque uma boa parte da vida dela, durante anos, passa a ser dedicada aos cuidados do filho.

Mulheres são mais burras, mais lerdas, mais irracionais, menos capacidade para serem cientistas, artistas, líderes, feitas para serem apenas secretárias e outros papéis subalternos?

Não.

Mulheres apenas têm útero, e na maior parte da história da humanidade, a maioria das sociedades nunca conseguiu criar estruturas para que a gravidez e os cuidados com os filhos não se tornassem uma enorme desvantagem na atuação das mulheres.

Não sei os detalhes da descrição das tribos, mas posso imaginar como é fácil um homem pensar "A mulher só fica aí cuidando do filho. É claro que eu mereço mais poder, mais privilégios do que ela, eu faço todo o serviço difícil".

Tem um outro amigo muito querido que me falou que gostaria de viver no mato, com os índios.

Durante alguns anos eu fiz dezenas de passeios para fotografar natureza, pelo Brasil e em alguns outros países. Eu já andei pelo Tocantins, por um pouquinho da Amazônia.

Você tem noção do calor?

Você sabe que na Amazônia, tem dias que parece que você está o dia inteiro na sauna? Com a diferença de que em vez de uma toalha cobrindo os genitais, você está de camisa de manga longa, bota, calça comprida, chapéu, repelente, protetor solar.

Tem ideia da quantidade de insetos, espinhos, plantas venenosas, animais peçonhentos que existem na mata?

Sabe o que é a época das chuvas?

Um amigo ornitólogo morou um tempo numa comunidade ribeirinha, para estudar uma espécie de ave que era mais fácil de observar por lá. Ele foi pra lá ainda tratando a Leishmaniose, uma doença tropical muito comum, a maioria dos meus conhecidos ornitólogos pegou, acho que um deles perdeu um pedacinho do nariz e teve que fazer plástica. Ele mesmo tinha que aplicar as injeções na barriga, estava fraco, triste. Ele trabalhava durante o dia, chegava na casa dele ainda tinha que fazer o jantar senão não teria o que comer, não tinha como ir para uma padaria, pedir uma entrega.

Você já imaginou o que é ter uma dor de dente e não ter dentista por perto? Eu já tive uma dor de canal no final de uma viagem pra Salvador. Estava num quarto de hotel, confortável, com ar-condicionado, mas encolhida de dor. Imagina isso no meio da mata.

Pensou em como é ter dores ou perrengues que são fáceis de resolver em qualquer farmácia, mas não tem farmácia a menos de 10h de onde você está? Ou pior. Tem um fotógrafo de natureza que teve crise de apendicite fotografando em Papua Nova Guiné, ele estava a mais de 20h de um hospital.

Já pegou carrapatos? Micuins? Já foi picado por aranhas, por abelhas, formigas, marimbondos? (eu já, sim pra tudo :))

Tem ideia de como é fácil pegar protozoários, ter dor de barriga, diarreia? Insolação? Infecção, inflamação?

Na África do Sul já fiz uma trilha ao entardecer que tinha tanto mosquitinhos, tantos, que mesmo tomando cuidado quando cheguei em casa, tomei banho, assoava o nariz e saía mosquitos. Não é metáfora, é verdade.

Alguns colegas que já andaram mais pela Amazônia falam de lugares que têm tantos insetos atraídos pelo seu suor que você simplesmente desencana de ficar espantando, você se conforma que eles ficarão pousando no seu rosto, nas suas mãos. Isso porque eles estavam cobertos da cabeça aos pés -- fora rosto e mãos.

São poucas as pessoas que estão realmente preparadas para viver no mato. E as tribos indígenas não são doces selvagens. São pessoas com culturas diferentes, valores morais diferentes.

Um amigo morou uns anos numa cidade do Mato Grosso, em que havia tribos indígenas. Ninguém podia mexer com os índios, e às vezes eles viravam os carros das pessoas de cabeça pra baixo, só por farra.

Não estou dizendo que todas as tribos são assim, e sim que há uma enorme diversidade de culturas, e que as visões do que é viver no mato com uma tribo indígena no geral são total fantasia e ilusão. Uma coisa é nascer índio, outra bem diferente é achar que você, acostumado com dentista, mercado,  hospital, médico, internet, farmácia, eletricidade, água encanada, colchão, ventilador, ambientes livres de insetos poderia facilmente se adaptar a um estilo de vida que não tem nada disso.

Eu sei que há coisas lindas nas tribos, mas uma coisa é visitar ou valorizar a diversidade cultural do mundo. Mas viver numa tribo indígena, isso é uma história totalmente diferente. 

----

Fonte da imagem: https://exame.com/mundo/funai-suspeita-existencia-de-tribos-proximas-a-usinas/